A história oficial do Paraná, frequentemente focada na narrativa de imigrantes europeus, negligenciou ou apagou a presença fundamental da população negra. A exposição "Em busca da Memória do Voto" propõe a desconstrução dessa visão, demonstrando que a participação negra no estado é um processo secular, marcado pela resiliência e luta contra barreiras sistêmicas. Entre o final do século XIX e o início do século XX, o Paraná aderiu ao "Paranismo", um projeto ideológico que buscou construir uma identidade regional baseada no branqueamento. Essa narrativa minimizou a memória negra, mas não sua atuação. O que se observa, portanto, é a existência de uma resistência contínua que remonta ao período escravista e se materializa na busca por cidadania e equidade. Cada figura apresentada nesta mostra, que construiu sua carreira na primeira metade do século XX, representa uma vitória sobre esse apagamento histórico e um marco na evolução da participação cívica no Paraná.

A população negra é intrínseca à formação do Paraná. Contrariando a historiografia que a subestima, a mão de obra escrava foi a base de diversas economias, do trabalho portuário em Paranaguá ao beneficiamento da erva-mate. Na época da emancipação política, em 1853, a população negra compunha cerca de 40% do total de habitantes do estado.

Na ausência de políticas públicas de integração após a Abolição (1888), a luta pela cidadania começou com a organização social e o apoio mútuo. As Irmandades Religiosas, como a Irmandade do Rosário dos Pretos de São Benedito, ofereciam assistência. O marco da resistência civil é a Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio: fundada por ex-escravizados em 6 de junho de 1888, funcionou como um centro de articulação política, cultural e educacional, oferecendo aulas noturnas de alfabetização e participando ativamente da organização da classe trabalhadora em Curitiba. A sobrevivência da Sociedade 13 de Maio até hoje é um marco vivo da resistência.

A presença de mulheres negras na história política e intelectual do Paraná constitui um campo de investigação ainda em consolidação. Em meio às restrições impostas por estruturas raciais e de gênero, algumas trajetórias emergem como expressões singulares de mobilidade social e inserção profissional em espaços hegemonicamente masculinos e brancos. No decorrer do século XX, figuras como Enedina Alves Marques e Maria Nicolas exemplificam o protagonismo feminino negro na constituição de esferas técnicas, educacionais e políticas no estado, revelando dimensões pouco exploradas da participação afrodescendente na vida pública paranaense.

Enedina Alves Marques (1913-1981) é uma figura histórica por sua coragem e pioneirismo. Em 1945, formou-se em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Paraná, fazendo história ao tornar-se não só a primeira mulher engenheira do estado, mas também a primeira engenheira negra no Brasil.

A trajetória de Enedina Alves Marques foi marcada pela superação de barreiras de gênero e raciais, especialmente por ter ingressado e se destacado em carreiras técnicas num período em que mulheres, e sobretudo mulheres negras, eram raramente admitidas nesses espaços. Seu pioneirismo está amplamente documentado, constando no setor paranaense da Biblioteca Pública do Paraná um dossiê que reúne notícias e informações sobre sua obra e biografia, como a Reportagem da Revista Panorama, volume 31, n 310, p 6-8, nov. 1981, sugerida para consulta.

No âmbito educacional, Enedina ingressou na escola em 1927 e concluiu seus estudos em 1931. Reconhecida por amigos como "Dindinha", ela seguiu o magistério, obtendo formação no Instituto Paranaense em Curitiba. Em 1932, após aprovação em concurso, foi oficialmente contratada pela Secretaria de Educação e Saúde Pública do Paraná. Entre 1932 e 1935, atuou como professora em diversas instituições públicas, lecionando em municípios como São Mateus do Sul, Cerro Azul, Rio Negro, Campo Largo e na própria capital, Curitiba.

No âmbito profissional, Enedina Alves Marques destacou-se por sua atuação como fiscal de obras e por ter ocupado cargos de chefia na Secretaria de Obras e Educação do Paraná. Suas contribuições incluem o projeto da rede hidráulica do prédio atual do Colégio Estadual do Paraná e a participação como uma das engenheiras responsáveis pela Usina Capivari-Cachoeira (atual Usina Governador Pedro Viriato Parigot de Souza). Sua relevância nessas grandes obras está documentada, por exemplo, no Panfleto inaugural do Colégio Estadual do Paraná de 1950, parte da documentação impressa do acervo do Museu Paranaense.

Em relação aos documentos eleitorais, identificamos na Hemeroteca da Biblioteca Nacional, publicação do Jornal O Dia, a 4ª Zona Eleitoral convocando Enedina para retirar seus títulos para votar nas eleições de 2 de dezembro de 1945. Para a realidade da década de 1940, o voto era obrigatório para as mulheres que exerciam atividade remuneratória. No recorte em questão, verifica-se que poucas eram as mulheres com a obrigatoriedade de se alistar como eleitora.

No último recorte, em documento guardado pelo Arquivo Público do Paraná, fundo 57, o Registro Geral 66998-9, o qual Enedina, ao prorrogar a validade de seu passaporte, apresentou seu título de eleitor nº 4.976, expedido em 04/10/1957, pela 1ª ZE- Curitiba, tendo votado nas eleições, nas eleições gerais de 1970, eleições municipais de 1972, eleições gerais de 1974 e eleições municipais 1976. 

Maria Nicolas (1899-1988)  foi professora, escritora, poetisa, historiadora, contista, dramaturga, teatróloga, novelista, biógrafa, pesquisadora e pintora. 

Nasceu em Curitiba-PR.  Era filha de Alyr Léon Nicolas e Josefa Nicolas. Formou-se professora aos 17 anos e no ano de 1912 substituiu a sua renomada mestra Júlia Wanderley, alfabetizando assim uma grande multidão de alunos.

A professora normalista e escritora Maria Nicolas (nascida em 1906, em Curitiba), filha de Alyr Léon e Josepha Nicolas, demonstrou desde cedo grande interesse pelo estudo e pela leitura, tendo seu ambiente popular e culturalmente rico – incluindo o tempo vivido no porão do Teatro Guaíra – contribuído para sua formação sensível e intelectual. Estudos recentes sobre sua trajetória destacam as estratégias de resistência e ascensão profissional que ela empregou em um ambiente marcado pelo racismo estrutural. Maria Nicolas é reconhecida pela autoria de obras importantes como o "Dicionário de Logradouros Públicos de Curitiba" e "Fragmentos Históricos ao Ensejo do 90º Aniversário da República". Seu prestígio é evidenciado pelo vasto material a seu respeito na Biblioteca Pública do Paraná, que inclui várias reportagens e, inclusive, a Propaganda Institucional da exposição de quadros da autora na Fundação Cultural de Curitiba.

A presença de Maria Nicolas no Livro Relação dos Eleitores do Paraná, inscrita até 1º de maio de 1933 como eleitora do município de Palmeira (inscrição 766, ainda com o sobrenome Zotto), adquire um valor simbólico e histórico imenso. Esse registro eleitoral surge imediatamente após o reconhecimento do direito ao voto feminino no Brasil pelo Código Eleitoral Provisório de 1932. Em um país ainda marcado pela herança escravocrata e pela exclusão das mulheres negras da vida pública, essa inscrição confirma sua participação ativa na esfera pública, representando um ato de cidadania política e resistência racial e de gênero que a coloca entre as primeiras mulheres negras a exercer o direito de voto no Paraná, reforçando seu papel como intelectual que desafiou barreiras sociais.

O Arquivo Público do Paraná, através do Fundo 57, também possui documentos de Maria Nicolas. Como nosso intuito é reforçar os documentos eleitorais, consta em documentos antigos do Instituto de Identificação que 23/01/1976 ela possuía o título 11.745, sendo eleitora da 8ª ZE/PR, município de Guaratuba, votando na 44ª sessão. Reconhecemos o valor histórico e simbólico de sua produção intelectual, reafirmando a relevância de Maria Nicolas como figura central na história da educação e da cultura paranaense — uma mulher que, pela escrita, pela docência e pela cidadania, conquistou espaços antes negados à população negra.

Apesar das políticas de apagamento, a história do Paraná é marcada por personalidades negras cujas trajetórias e conquistas foram cruciais para o desenvolvimento do estado e para a abertura de caminhos na política e em outras áreas.

Justiniano Clímaco da Silva, conhecido como "Doutor Preto", foi uma figura pioneira na história de Londrina e do Paraná. Nascido em 1908, na Bahia, ele se formou em Medicina na Faculdade de Medicina da Bahia e mudou-se para Londrina em 1938, durante um período de grandes epidemias na cidade. Lá, dedicou-se ao atendimento médico da população, especialmente dos mais pobres, utilizando técnicas quase artesanais e um Ford Model A de 1928 para percorrer as áreas rurais. Além disso, foi um dos fundadores da Associação Médica de Londrina e da Santa Casa de Londrina, instituições que desempenharam papéis fundamentais na saúde da região,

Em 1947, Justiniano Clímaco foi eleito deputado estadual pelo Partido Social Democrático, tornando-se o primeiro deputado estadual negro do Paraná, com 1816 votos, garantindo a eleição em Londrina, Apucarana, Arapongas e Rolândia. Durante seu mandato, trabalhou para a construção de um hospital para tuberculosos em Londrina, que mais tarde se tornaria o Hospital Universitário da Universidade Estadual de Londrina (UEL)  — instituição que se tornou referência regional em pesquisa, ensino e atendimento à população.

Com base no Edital 6 de Apuração das Eleições de janeiro de 1947, disponibilizado pelo Departamento de Arquivo Público do Paraná (mapa eleitoral 1947.26), é possível verificar os resultados parciais de diversas zonas eleitorais. O documento, que inclui as 35 seções de Londrina, demonstra na página 2 que Justiniano Clímaco da Silva obteve 1741 votos.

 Seu desempenho eleitoral demonstrou prestígio tanto entre as comunidades rurais quanto urbanas, refletindo o respeito conquistado por sua atuação como médico e cidadão engajado nas causas sociais. Apesar de sua atuação política, ele preferia a prática médica e, após seu mandato, não se envolveu mais em cargos eletivos, embora tenha sido candidato a vice-prefeito de Londrina em 1968 na chapa com Dr. Arvid Augusto Ericson, pela sub legenda ARENA 2, com 2854 votos. 

A trajetória de Justiniano Clímaco da Silva é um poderoso exemplo de dedicação à medicina e à comunidade, consolidando-se como um marco na presença negra no Paraná. Mesmo durante seu mandato político, ele manteve o exercício da medicina, prestando atendimento a pessoas de baixa renda e participando ativamente de campanhas de prevenção e combate a doenças. Essa postura ética e solidária lhe rendeu grande respeito tanto entre colegas de profissão quanto entre seus eleitores. Para aprofundar a memória e a importância do Dr. Justiniano Clímaco da Silva na história política e social do Paraná, sugerimos a pesquisa junto ao Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica Enezila de Lima, pertencente à Universidade Estadual de Londrina (UEL).

Antenor Pamphilo dos Santos, nascido em Salvador, Bahia, em 1895, é uma figura central na história da representação política negra no Paraná. Em Curitiba, Pamphilo começou a trabalhar na Secretaria de Saúde Pública, e, em 1921, graduou-se em Farmácia pela Universidade do Paraná, nome dado à época à atual Universidade Federal do Paraná.

Antenor Pamphilo dos Santos, que trabalhava como Guarda de Endemias na Secretaria da Saúde, formou-se em medicina pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 1928. Na ocasião, foi o primeiro a receber o “Nilo Cairo”, prêmio simbolizado por uma medalha (hoje exposta no Museu Paranaense) concedida ao estudante com a melhor nota do curso, como forma de congratulação. 

Após a formatura, Antenor construiu uma carreira notável, destacando-se como médico sanitarista e professor da UFPR, onde se tornou diretor da Faculdade de Medicina. Sua influência na vida acadêmica e no serviço público de saúde foi substancial e preparou o terreno para o seu legado mais significativo, que se consolidaria na política paranaense.

A primeira eleição disputada por Antenor Pamphilo dos Santos no contexto da redemocratização ocorreu em janeiro de 1947, quando concorreu a uma vaga para suplente de senador, obtendo 11.467 votos em um pleito que apresentava regras específicas para essa função. Contudo, o marco definitivo de sua trajetória política se consolidou em novembro de 1947, quando foi eleito vereador na capital paranaense com 668 votos, pelo PSD. 

Antenor Pamphilo se tornou o primeiro vereador negro da história de Curitiba em eleições organizadas pela Justiça Eleitoral, um feito de enorme significado cívico. As atas finais deste pleito, estruturadas sobre as quatro zonas eleitorais, comprovam sua vitória e estão disponíveis no Departamento do Arquivo Público do Paraná, podendo ser localizadas pelo código 1947.33.

Seu pioneirismo não se limitou à posse de vereador. Antenor Pamphilo assumiu interinamente a Prefeitura de Curitiba em 1948, tornando-se a primeira pessoa negra a chefiar o Executivo municipal e foi reeleito para a Câmara Municipal de Curitiba em 1955.

Apesar de seu sucesso na esfera municipal, Antenor Pamphilo manteve uma carreira política contínua no âmbito estadual, disputando as eleições para deputado estadual em três ocasiões (1950, 1954 e 1958). Em todos os pleitos, ele obteve uma votação significativa, especialmente em Curitiba, mas não o suficiente na circunscrição estadual para conquistar a cadeira diretamente, tornando-se suplente. Essa persistente carreira política, somada à sua reconhecida característica técnica como médico e professor, credenciou-o a ocupar importantes cargos no governo estadual de Moysés Lupion (1956-1960), comprovando sua relevância para além do mandato eletivo. Como contribuição histórica, disponibilizamos a imagem do diploma eleitoral de suplente da eleição de 1958, documento que comprova sua relevância para além do mandato eletivo.

A dedicação e os desafios da campanha de Antenor Pamphilo dos Santos são evidenciados em propagandas eleitorais localizadas no Hemeroteca da Biblioteca Nacional e no site da Câmara Municipal de Curitiba. Sua influência na sociedade curitibana era particularmente notável: durante a campanha para deputado estadual em 1958, seus alunos da UFPR manifestaram apoio com a faixa "Não vote em branco, vote no professor Pamphilo". Essa frase sintetiza o reconhecimento público de sua identidade e a importância de sua figura para a consciência racial da época, provando que a participação política negra no Paraná foi uma realidade de resistência e dedicação desde o início do século XX.

A trajetória da representatividade negra no Paraná, conforme detalhada nesta exposição, é uma poderosa narrativa de superação, persistência e conquista da cidadania. Os caminhos trilhados por Maria Nicolas, Enedina Alves Marques, Antenor Pamphilo dos Santos e Justiniano Clímaco da Silva constituem marcos inegáveis na evolução do voto e dos direitos cívicos no estado.

Ao alcançarem notoriedade em áreas cruciais como a engenharia, a medicina, a educação e o poder legislativo, esses pioneiros não apenas romperam as barreiras do racismo estrutural, mas também exerceram o direito pleno de participação na vida pública.

Esta exposição, lançada no Mês da Consciência Negra em Movimento e hospedada pelo Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR), cumpre um papel fundamental de justiça histórica, reinserindo esses nomes e suas contribuições na linha do tempo oficial da cidadania e da política paranaense. Ao olharmos para o presente, é essencial reconhecer que a resiliência desses pioneiros pavimentou o caminho para a contínua luta por equidade e para a ascensão de novas figuras representativas, a exemplo da primeira deputada federal negra do Paraná, Carol Dartora. Suas vidas são a prova viva de que a história do voto no Paraná é, indissociavelmente, a história da luta pela representação negra.

Em continuidade a esse trabalho, a Seção de Gestão Documental, Memória Institucional e Biblioteca do TRE-PR reconhece que, embora esta exposição tenha o recorte definido nas personalidades da primeira metade do século XX, a pesquisa da representatividade negra prossegue. O Tribunal acompanha ativamente a evolução eleitoral desde a inserção do quesito raça nos registros de candidaturas nas eleições de 2014, e garante a preservação de todos os dados eleitorais — incluindo o registro das candidaturas, as atas de resultados e de proclamação, e os diplomas dos eleitos — consolidando o papel do TRE-PR na guarda da memória cívica e na transparência do processo eleitoral.

6) Referências

BENITE, Anna M. Canavarro. Enedina Alves Marques: primeira engenheira negra do Brasil. Revista da ABPN, v. 12, n. 33, p. 688–691, jun./ago. 2020. DOI: 10.31418/2177-2770.2020.v12.n.33.p688-691. ISSN 2177-2770.

SCHUINDT, Silvana Mendes; VAZ, Adriana. Maria Nicolas (1906–1938): mulher negra, uma “forasteira de dentro” no ensino público primário do Paraná. PerCursos, Florianópolis, v. 25, e0102, 2024. DOI:10.5965/19847246252024e0102.

VANALI, Ana Crhistina. Professor Doutor Antenor Pamphilo dos Santos (1895-1967): de “Mata Mosquito” a médico negro renomado. Conhecimento Interativo, São José dos Pinhais, v. 15, n. 1, p. 93–109, jan./jun. 2021. ISSN 1809-3442.